Tenho lido o Socio[B]logue 2.0, e encontrado textos muitos interessantes. O blogue está parado desde 2003. Cinco anos: uma eternidade em tempo blogosférico. Ainda assim encontrei-o, li-o, e gostei.
Aqui fica um dos textos publicados pelo João Nogueira.
A Omnipresença do Olhar: Do Olhar Clínico ao Olhar Sociológico (act)
A partir dos trabalhos de Michel Foucault (1963) e de alguns autores pós-foucauldianos – a expressão não é a melhor, bem sei – sobre a medicina nas sociedades contemporâneas, generalizou-se, na literatura sociológica e historiográfica, o uso das expressões «le regard clinical» ou «le regard médical» – o olhar clínico. Penso, designadamente no trabalho de autores como Bryan S. Turner (1992, 1995), Deborah Lupton (1994), David Armstrong (1994), Paul Atkinson (1995) ou Nick Fox (1993) [consultar adicionalmente os interessantes volumes colectivos organizados por Colin Jones e Roy Porter (1994) e, pouco depois, por Alan Petersen e Robin Bunton (1997)].
Essas expressões são utilizadas, amiúde, com o propósito analítico de desmontar o dispositivo exegético bio-médico que permite o diagnóstico a partir de sintomas superficiais e irrelevantes. De acordo com essa literatura, esse olhar é, sobretudo, um olhar “objectificante”. Um olhar que codifica os corpos e os reduz a objectos de observação.
O olhar sociológico não é diferente. Primeiro estranha-se. Depois, lentamente, entranha-se. E não é pouco. Onde eu via vizinhos, vejo hoje “relações sociais de vicinato”. Onde eu observava ricos e pobres, observo hoje “sistemas e estruturas de classe” e “grupos de status”. As conversas sobre afectos transformaram-se em “discursos da conjugalidade e de sexualidade”. Para onde quer que olhe vejo uma realidade codificada: campos, sistemas, esferas, actores, sujeitos, agentes, discursos, narrativas, economias de bens simbólicos, etc. Enfim, uma construção sociológica da realidade: uma matriz de (re)interpretação dessa realidade.
E não é, advirto, apenas uma mera questão de substituição de “expressões”. Longe disso. Sempre que entro no metro entretenho-me a analisar as “estruturas proxémicas e quinésicas” dos passageiros e a desconstruir os seus “projectos de corporeidade”. Quando participo em conversas dedico-me a desmontar as “para-linguagens” e o uso de “recursos seguros” por parte dos meus interlocutores. São disposições incorporadas. Faço-o “automaticamente” e sem uma intenção deliberada de o fazer. E é nesses momentos que o meu superego sociológico – sim, ele existe – começa a actuar forçando a reflexividade sobre as minhas acções… É então que me ponho a pensar que este olhar não é menos objectificante que o olhar clínico e me apercebo das (muitas) similitudes entre os dois dispositivos exegéticos.
Este “olhar” é, ademais, quase omnipresente… e reflexivo (ou auto-reflexivo). Daí que produza, com inusitada frequência, textos como este em que desconstruo o “olhar sociológico” recorrendo, para o fazer, ao meu “olhar sociológico”. Enfim, são, como diria Raymond Boudon, os “efeitos perversos” do meu processo de incorporação da sociologia.
Armstrong, David (1994), «Bodies of Knowledge/ Knowledge of Bodies», in Colin Jones e Roy Porter (eds.) (1994), Foucault: Power, Medicine and the Body, London: Routledge.
Atkinson, Paul (1995), Medical Talk and Medical Work: The Liturgy of the Clinic, London: Sage Publications.
Foucault, Michel (1963 [1993]), Naissance de la Clinique, Paris: Quadrige/ PUF .
Fox, Nick (1993), Postmodernism, Sociology and Health, Buckingham: Open University Press.
Jones, Colin e Roy Porter (eds.) (1994), Foucault: Power, Medicine and the Body, London: Routledge.
Lupton, Deborah (1994), Medicine as Culture: Illness, Disease and the Body in Western Societies, Londres: Sage Publications.
Petersen, Alan e Robin Bunton (eds.) (1997), Foucault, Health and Medicine, London: Routledge.
Turner, Bryan S. (1992), Regulating Bodies: Essays in Medical Sociology, London: Routledge.
Turner, Bryan S. (1995), Medical Power and Social Knowledge, London: Sage Publications.